"...o disco continua a girar..."
Gostava de partilhar com vocês um texto do jornalista e audiófilo José Victor Henriques que faz um relato quase poético da relação com o vinil.
"Retira-se o disco da capa com dois dedos leves, qual hóstia sagrada em acto litúrgico. Coloca-se o disco no prato e faz-se descer o braço. Há quem consiga apontar a agulha com a precisão de um cirurgião, que só depois segue pelo seu pé o tortuoso caminho, contrariando a força centrífuga e lavrando sons enterrados na superfície ondulante de espiras hipnóticas, numa fritura branda e estranha para quem já nasceu na era digital. A arte de baixar e levantar manualmente o braço do gira-discos devia ter um capítulo na Ars Amandi, de Ovídio. Quando a agulha penetra a espira em profundidade, inicia-se o coito musical, que pode durar apenas o tempo de uma faixa ou um lado completo: A ou B. Até o virar do disco tem um efeito de suspensão narrativa, um sentimento de puro gozo de antecipação, que se perdeu com o CD, tal como o intervalo no cinema.
No final o disco continua a girar, mesmo quando a música já deixou há muito de se ouvir, numa atitude lânguida de abandono: os puristas rejeitam os mecanismos de elevação automática do braço. O verdadeiro amante, satisfeito o desejo, não gosta de abandonar a alcova sem uma última manifestação de carinho: limpa carinhosamente a agulha das trovas do tempo que passa.
Ao contrário do leitor-CD, o gira-discos não tem a função «repeat». Cada audição de um LP é assim um acto consciente e voluntário: todos os rituais se cumprem na repetição de gestos sagrados e imutáveis, segundo Lèvy-Strauss.
No CD a música é uma complexa trama de números cabalísticos; não há contacto físico entre a agulha de luz e o disco; e o próprio acto de reprodução é regulado à distância por controlo tão remoto quanto asséptico: não há desgaste, nem risco, no duplo sentido da palavra. Eis porque haverá sempre quem prefira sofrer os efeitos perversos da electricidade estática, o desespero dos empenos, a angústia da morte anunciada das espiras, em troca do prazer de ouvir e coleccionar LP raros, que se vão tornando objectos de colecção. Ou talvez por isso...
No LP a música é representada pelo tempo de actuação de uma bailarina que evolui em pontas de diamante sobre a superfície ondulante do disco ao ritmo de 33 rpm, no espaço limitado pelo raio de acção do braço. No CD, tal como nos relógios digitais, o tempo musical é apenas uma representação numérica. Nos gira-discos, tal como nos relógios analógicos, é o espaço percorrido pelos ponteiros que determina o tempo: o que passou e o que ainda falta passar. Enquanto no analógico o tempo existe em função do espaço, no digital só o tempo existe - daí a importância da precisão do «clock» e os efeitos perversos do «jitter» na performance dos leitores-CD.
Ora o tempo, em si, sem a componente espaço, não passa de uma abstracção. Ao determinar o tempo musical em função do espaço, o gira-discos tornou-se, paradoxalmente, um objecto de arte intemporal. O CD foi lançado no mercado com o arrogante slogan «perfect sound forever». Passados apenas 20 anos, está prestes a ser substituído pelo Super Audio CD e pelo DVD-Audio. Com ele cai também o mito da eterna juventude. O LP vai continuar vivo: pode envelhecer, gastar-se, curvar-se; pode até a voz perder claridade, o catarro insinuar-se no discurso. Et pour cause, soará sempre mais natural, mais humano. Pura analogia?"
2 comentários:
MAs que pérola de texto Pedro....
;)
Vasco
gostei deste texto...
tem muito daquilo que tu sempre falaste dessas bolaxas!
beijinho
(até daki a 2 semanas!*)
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