Gil Scott-Heron "Abutre"
Pela primeira vez no Blogue deixo-vos com uma proposta literária. Gil-Scott Heron é uma lenda musical, mas com vários outros talentos: também escrevia poesia, ensaios e canções, tocava e compunha ao piano, e cantava de maneira cativante. É em 1970, com apenas 21 anos que lança a primeira edição do livro, Abutre foi visado na ocasião, pela revista Essence, como "um início sólido de um escritor com coisas importantes a dizer".
Abutre é o primeiro romance de um dos pais do rap e consequentemente um fascinante retrato dos anos 1960 em Nova York.
" Algo entre as saborosas narrativas de gueto do escritor Chester Himes e os despistes do romance noir, em um ambiente marcado pela invasão das drogas, o livro prenunciava a estética pop e violenta da blaxploitation, o gênero negro que explodiu no cinema ao longo dos anos 70, combinando a exposição das mazelas do gueto e a emergência da comunidade negra como consumidora.
Em 1970 a luta pelos direitos nos Estados Unidos estava passando por uma mudança, dando vez ao Black Power. O movimento dos direitos civis dos anos 60 perdeu impulso, rachado pelos diferentes grupos de pressão, e ao mesmo tempo ignorado pelo governo, cada vez mais enrascado na guerra do Vietnã. Líderes populares tinha sido calados pela prisão ou assassinato.
A Black Music refletiu a mudança, ficando mais agressiva. Coisas como "What`s Going On" (Marvin Gaye) nem pareciam ser apenas do ano anterior. Uma nova voz surgia no ataque, para jogar luz no crime e sacudir a apatia. Era a voz de Gil Scott-Heron, articulada, descomprometida e enraivecida.
Gil nasceu em Chicago em 1949. Sua mãe era uma acadêmica graduada magna cum laude em biblioteconomia; seu pai um jogador profissional de futebol nascido na Jamaica. Depois do divórcio deles, Gil foi morar com a avó em Lincoln, Tennessee, com quem aprendeu a tocar piano embebido no soul de Memphis e no Blues. No ensino básico ele era uma das três únicas crianças negras na Jackson Elementary School. Depois que a perseguição por parte dos estudantes brancos se mostrou insuportável, Gil foi morar com a mãe em Nova York, primeiro no Bronx e depois no bairro hispânico de Chelsea. Foi na escola particular de NY que Gil estudou os artistas negros da chamada renascença do Harlem, em especial o poeta Langston Hughes. Seguindo os passos dele, Gil inscreveu-se na Pennsylvania University. Mas trancou matrícula logo no primeiro ano, para concluir sua primeira ficção, que viria a ser Abutre, e um livro de poesia, Smalltalk At 125th & Lennox.
Ao mesmo tempo, Gil assinou com o selo Flying Dutchman para uma gravação declamada de seus poemas de consciência negra, acompanhado por congas e outras percussões. Esse seria seu primeiro álbum, também chamado Smalltalk..., e um dos fundamentos do vindouro rap.
Outros álbuns se seguiram em 1971 e 1972, e um segundo romance, The Niggers Factory, que se passa em um campus negro, inspirado na vida universitária que Gil retomou. Esse seu segundo e último romance antecipa temáticas negras intelectualizadas e de classe média, como as que dariam forma, depois de quinze anos, ao cinema de Spike Lee.
Gil não se parecia com nada visto antes no pop, um artista negro conseqüente e politicamente articulado, rebelando-se com inteligência contra a hipocrisia e a crueldade social. Crooner comovente e melancólico no balanço do jazz-soul, ou ativista vociferando sobre percussões secas, Gil criou um estilo novo e pessoal na música, como poderia ter criado na literatura.
Sem ser a citação direta e ingênua, ficava claro que ele era plenamente consciente da rica herança Afro-Americana, e das suas possibilidades expressivas ilimitadas. Gil estava para o soul como Miles Davis para o jazz. A literatura nunca foi formalmente abandonada, mas o ritmo de sua carreira, e o impacto imediato da música sobre as ruas, se impuseram.
"Nunca houve falta de inquietação na comunidade negra, só falta de direção", disse Gil ao Village Voice em 1975. O ímpeto nas primeiras gravações de Gil era o de indicar essa direção, não em teorias, mas conhecendo os fatos, colocando as questões precisas e permanecendo fiel ao seu espírito. Nesse ano Gil assinou com o selo Arista, e sua visão alargou-se e relaxou, dando à luta um enfoque mais geral.
Seus poemas cantados, sempre diretos, começaram a falar também da África e o Terceiro Mundo, mantendo um olho crítico na vida do gueto e outro no capitalismo. "Johannesburg", uma canção sobre o apartheid bem longe do padrão radiofônico, foi hit. Seu som estava mais resolvido do que nunca, graças à parceria o pianista Brian Jackson, seu colega na Lincoln University.
A partir de 1978 Gil trabalhou com o produtor de Stevie Wonder, Malcolm Cecil, que suavizou a música mas não as letras, atacassem elas o Irã, a política nuclear ou o presidente Ray-Gun. Gil excursionou com Stevie pelo mundo, à frente da Powerhouse Midnight Band. Depois de deixar a Arista, em 1985, continuou a excursionar com a Amnesia Express, e lançou alguns álbuns de distribuição restrita. Em 1979 e 1990 voltou a publicar, agora livros de letras e poesia.
Em 1994 Gil finalmente viu sair Spirits, seu primeiro álbum de inéditas em 12 anos, pela TVT. Tocou no Woodstock `94, no Womad na Inglaterra, no Central Park de Nova York, e gravou um Unplugged para a MTV. Com os seus contemporâneos mais militantes dos Watts Prophets e dos Last Poets, foi definitivamente reconhecido como precursor do rap - condição confirmada nas várias vezes em que foi sampleado, e na colaboração com Ali Shaheed Muhammed do A Tribe Called Quest.
Em 1996, o editor escocês Jamie Byng, da Payback Press, especializada em literatura da subcultura Black e Afro-Americana (com autores como o ex-gigolô Iceberg Slim e o ex-presidiário Chester Himes), decidiu que era hora de tirar os livros de Gil da condição de raridades absolutas.
Byng, pesquisando nas bibliotecas americanas, descobriu que todas as cópias listadas tinham sido roubadas (!); e só conseguiu achar seu exemplar de Abutre em um sebo em Boston, a um alto preço de colecionador. Gil, nesse seu novo "renascimento", declarou que seu próximo livro pode ser uma autobiografia."
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